Por Laércio Meirelles

A cidade de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, Brasil, possui atualmente dezenas de feiras semanais que comercializam exclusivamente produtos ecológicos. Essas feiras, que acontecem em espaços públicos e privados, são hoje parte da arquitetura da cidade. Ocorrem nos mais variados bairros e quase todos os dias da semana, sendo o sábado o dia que concentra o maior número delas. Como nada surge do nada e, por consequência, tudo surge de algo, é bom lembrarmos que a primeira feira com estas caraterísticas, na capital gaúcha, ocorreu em 14 de outubro de 1989. Esse sábado-feira, que deveria ser único e comemorativo ao Dia Mundial da Alimentação, acabou tornando-se a primeira edição da FAE – Feira de Agricultores Ecologistas, que marcou posição, fez história e gerou filhas. É que o sucesso foi tão grande que naquele mesmo dia os organizadores, em conjunto com as famílias agricultoras que ali estavam, optaram por repeti-la no mês seguinte. Por treze meses ela foi mensal, por outros onze meses foi quinzenal, para, após dois anos, assumir seu caráter semanal.

A mentora e organizadora deste movimento foi a Cooperativa Ecológica Coolméia, que, com um pioneirismo impressionante, pregava a comida naturista e o ecologismo popular desde fim dos anos setenta. Ecologismo esse que deveria começar por cada um de nós, não descuidando dos alimentos que ingerimos e de como eles são produzidos. No cenário da capital, já existia a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – Agapan, criada como expressão da luta ambiental que surgiu nos anos 1970 em solos gaúchos, liderada pelos saudosos José Lutzenberger e Augusto Carneiro. A Coolméia, na esteira da Agapan, consolida a cidade como precursora do movimento ambientalista e da agricultura ecológica em solos brasileiros.

Aliás, era muito comum ver o Lutz fazendo suas compras na FAE, aos sábados pela manhã, junto com suas filhas, que hoje dão prosseguimento ao trabalho do pai através da Fundação Gaia. Carneiro também estava semanalmente por ali, até passar a feirante, vendendo livros que transitavam pelo tema da ecologia em suas múltiplas dimensões. Eram momentos mágicos quando, em meio à feira, víamos uma roda de conversa formada por Lutzenberger, Carneiro, Sebastião Pinheiro e Jaques Saldanha. Alguns de nós, mais jovens, colocávamos ouvidos atentos e olhares admirados sobre esses pioneiros da Agricultura Ecológica no Estado e o Brasil. E oportunidades assim multiplicavam-se a cada sábado, com esses e outros nomes, tantos que não podemos aqui elencar todos.  Entretanto, não podemos deixar de citar a Maria José Guazzelli, a Glaci Campos Alves e a Magda Renner.

Quem esteve na FAE neste início nunca irá esquecer aqueles espaços de construção coletiva, onde colocávamos em prática conceitos que não conhecíamos. Nós não sabíamos o que eram circuitos curtos de comercialização, mas o trabalho era desenvolvido nesta perspectiva. Não sabíamos o que seriam os sistemas agroalimentares globais, mas ali estávamos, a cada sábado, mostrando uma proposta que dizia algo sobre por onde eles deveriam ser reconstruídos. Mesmo a certificação orgânica era um termo por nós desconhecido no fim dos anos 1980, mas isso não nos impediu de pensar uma forma autônoma e autárquica de garantir a qualidade ecológica (hoje mais conhecida por orgânica) da produção ali comercializada. Aliás, essa forma de certificação, atualmente mais difundida como Sistemas Participativos de Garantia, ganhou mundo. Surgiu ali, na Feira de Agricultores Ecologistas, no NTA – Núcleo Técnico Agropecuário da Coolméia e, hoje, é reconhecida pelo mundo da Agricultura Orgânica e praticada em cerca de cem países.

A FAE foi pioneira em muitos aspectos: naqueles idos, hoje talvez não seja tão diferente, existia toda uma tribo urbana, digamos, alternativa, que tendia a ocupar esses espaços. A Coolméia, atenta aos objetivos que se propunha ao construir a FAE, evitou que a feira fosse protagonizada por eles. A orientação era que a agricultura familiar tivesse o papel principal naquele espaço. Muitos desejos de fabricantes de pães, biscoitos e tortas integrais, licores caseiros ou artesanatos com materiais naturais foram abortados, não sem gerar queixas e dissabores. A intenção nunca foi desmerecer o valor do trabalho que eles desenvolviam, mas era necessário priorizar. E a prioridade da FAE era a produção in natura e seus protagonistas, agricultores e agricultoras familiares.

Também foi na FAE que surgiu a ideia de ser criada uma Comissão da Feira, que seria responsável por gerir aquele espaço de forma autônoma. Essa iniciativa permitiu que, anos mais tarde, quando a Coolméia saiu de cena, as famílias agricultoras tivessem plenas condições de assumir a coordenação do espaço e criarem sua própria associação.

E muitas outras ideias que ali surgiram multiplicaram-se por outras feiras, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, no Brasil e mesmo fora dele. Sim, porque foram inúmeras as visitas recebidas por parceiros de ideais, vindos de vários cantos, de diversos países, que passaram pela FAE para mirar essa iniciativa e ali buscar inspiração.

Mas… os grandes personagens dessas feiras sempre foram as agricultoras e os agricultores. Em um momento incipiente da Agricultura Ecológica, essas famílias acreditaram e colocaram em prática uma ideia que já fazia parte de seu desejo de produzir e comercializar produtos ecológicos.  Eu, como agrônomo do Centro Ecológico, entidade que surgiu em 1985, no município de Ipê, para apoiar tecnicamente a transição da agricultura convencional para a ecológica, fui testemunha cotidiana de como as famílias foram criativas e audaciosas ao mudar seus sistemas de produção, baseando-se nas poucas informações que tínhamos. Ouvi do Gilmar Pontel, da AECIA, família pioneira na produção de uva ecológica e a primeira a disponibilizar essa fruta na FAE: “Laércio, nós tínhamos muito poucas informações, nós fomos as cobaias, e nos orgulhamos disto”.

Eram poucos os livros com as informações necessárias para ter um bom cultivo ecológico. Haviam textos do Lutzenberger, livros do Sebastião Pinheiro e o antológico Manejo Ecológico do Solo, da professora Ana Primavesi. Também o livro “Plantas Doentes pelo Uso de Agrotóxicos”, do pesquisador francês Francis Chaboussou tornou-se uma importante referência. Vale ressaltar que esse último livro foi trazido para o Brasil pelo Lutz e traduzido pela já citada Maria José. Eram poucos… éramos poucos… poucos mas entusiasmados com a perspectiva de semear boas ideias, construir um rural diferente, que se harmonizasse com as cidades e fosse por essas valorizado na sua tarefa de produzir alimentos saudáveis.

Lembro-me como o então presidente da Coolméia, o Advogado e Engenheiro Agrônomo Jacques Saldanha sintetizava o compromisso dos agricultores na produção de alimentos saudáveis: “aqui na FAE, as famílias agricultoras estendem sua mesa às famílias consumidoras”. Simples e preciso.

Vale ressaltar também o papel do Engenheiro Agrônomo e Florestal Sebastião Pinheiro – não existe uma única família agricultora ecologista do Rio Grande do Sul que não utilize técnicas e se valha de informações criadas ou explicadas pelo Sebastião. Muitas vezes verdadeiras aulas eram dadas ali, aos sábados pela manhã, na FAE.

Bom, não podemos aqui contar tudo que o vimos e ouvimos nesse espaço tempo marcante. Mas deixamos aqui nossos agradecimentos e felicitações a quem “viu antes” e teve a ousadia de transformar essa visão em algo real. As ideias e ideais da FAE multiplicaram-se. Hoje são dezenas de Feiras em Porto Alegre, centenas no Rio Grande do Sul, milhares no país. Boa parte delas tiveram, de alguma forma, influência da FAE, mesmo que não saibam disto.

Vida longa à FAE, vida longa às Feiras que, uma vez mais, com criatividade e pioneirismo em meio a pandemia do Covid-19, seguem oferecendo produtos ecológicos oriundos da agricultura familiar, dos camponeses e das camponesas e de trabalhadores rurais de todos os matizes.

O necessário redesenho do Sistema Agroalimentar Mundial, na direção do Bom, Limpo e Justo para todos, começa por desenharmos circuitos curtos de produção e circulação de alimentos com alta qualidade biológica. As feiras são um espaço imprescindível nesta direção. Esse local de encontro precisa ser valorizado e apoiado de forma decisiva pela sociedade. Não podemos nos deixar seduzir pelo canto de sereia do estacionamento fácil, do chão brilhante ou da temperatura artificialmente controlada. Estes supostos prazeres têm um preço, um alto preço, usualmente pago pela saúde, de quem consome e da natureza.

O compromisso da alimentação saudável, de forma igualitária, deve ser de cada um e cada uma de nós, de todas e todos nós. Refletir sobre o que comemos é urgente e necessário. Afinal, o que nosso alimento alimenta?

E você, que nos lê, já fez tua feira hoje?

1 Comentário

  • Carlos R.C.Lemos
    Posted 20 de maio de 2021 at 18:55 0Likes

    Salve Laércio,
    Parabéns pelo belo texto, sucinto e abrangente.
    Seria também bom citar a influência da Associação Macrobiótica de Porto Alegre, com o seu pioneirismo na alimentação saudável e a Grande Fraternidade Universal-GFU, que foi onde surgiu a Coolméia.
    Abraço,
    Carlos Lemos, associado fundador da Coolméia.

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